segunda-feira, 16 de junho de 2008

Carne e osso

Não importa o quanto decididas, bem resolvidas e fortes as pessoas aparentem nas ruas e colos... Não há pessoas-fortaleza.
Quando você olha de perto, se revelam as pequenas rachaduras, fissuras e falhas. E isso inclui você mesmo. E, quando você vê isso, acaba de descobrir mais uma pessoa ali, do lado de dentro. Essa pessoa chora e sorri, como a casca. Essa pessoa conversa, como a casca. Mas ela não é a casca, não pode suportar muita pressão.
Essa casca, penso eu, é o que nos protege e nos condena. Como uma reação de nossa pele ao oxigênio, que desencadeia um processo de endurecimento da superfície, uma carapaça. Protege porque agüenta as pancadas, mas condena porque não cresce nem se adapta. Ou nos adaptamos a ela ou a rompemos, nos submetendo à próxima casca que se formará.
Nesse processo de adaptação, de acomodação, surgem as primeiras falhas na estrutura. Primeiro, pequenas rachaduras imperceptíveis, que mais facilitam a ventilação e flexibilizam minimamente o traje rígido que representam grande mal e alarme. São pequenos problemas, nas articulações - "quem é que não tem isso?!" dizem as pessoas. Está tudo previsto no projeto.
Depois, algumas rachaduras aparecem em lugares um tanto quanto estranhos, não costumazes, mas que não fogem ao "adequado" - afinal, "ninguém deve ser igual a ninguém". São marcas particulares, provavelmente de alguma briga ou queda, que todos, em certa medida, apresentam de forma regular, mesmo que não nos mesmos lugares e não na mesma quantidade. São decorrentes do uso em condições particulares, incontroláveis pelas pessoas. Condições não previstas, mas consideradas na contrução do traje, que provém algumas áreas reforçadas e outras fragilizadas - é um equilíbrio tênue, a distribuição dessa força.
Enfim, aparecem alguns buracos. Fendas maiores e rachaduras muito maleáveis, que revelam as pessoas lá de dentro. Poucos - e sortudos - conhecem suas próprias fraturas e podem trabalhar nelas, de dentro pra fora, mesmo que não tenha muito efeito. Esse conhecimento permite que se adapte não mais a disposição do corpo dentro da casca, mas a forma de andar, as técnicas de esquivar e qualquer modo de fazer coisas que possa se beneficiar das falhas nas estruturas e, ao mesmo tempo, ocultá-las. Outros muitos, infelizmente, não sabem de suas fraquezas e aceleram o próximo passo. Forçam toda a estrutura e acabam, de uma forma ou de outra, acelerando um processo - não que essa aceleração não seja natural; digamos, é menos confortável. Conhecer a si mesmo, em qualquer batalha, significa grandes chances de ganhar, mesmo com baixas - é o que me lembro de ter lido de Sun Tzu, em seu célebre "A arte da guerra".
A essa altura, já não há conhecimento suficiente dos processos e dos resultados. Essa última fase, já citada anteriormente, não pode ser descrita em manuais ou pequenos devaneios teórico-metafóricos, como este. O que acontece nesse nível é de competência ainda mais privada e terrível da pessoa que enverga a carapaça rachada ao meio. Essa carapaça perde, nesse estágio de sua destruição, sua função primordial - proteção - e ganha pontas voltadas para dentro, grandes rachaduras e perda da rigidez mínima em várias partes. Agora, começa a verdadeira fase de renovação, quando cai - ou temos que tirar, o que é ainda mais doloroso - a última placa. Voltamos a ter cem por cento de contato com o ar, a luz, nossa pele e a dos outros, nossas feridas... Conduzir-se só nesse processo é algo muito edificante, embora possa ser um pouco arriscado. Mas não é qualquer ajuda o que se precisa quando se entra nessa fase. Faz-se necessário dizer que esta sumária descrição, vaga e nebulosa, é apenas um esboço de um entendimento parcial; não se pode inferir nada sobre o assunto com base apenas nessa fala. Essa parcialidade se dá, talvez, porque o processo em questão esteja sendo observado por este falante no corrente momento, ou em si mesmo ou em alguéns próximos.
Não há mais inferências a se fazer sobre o que acontece nesse grande processo de eventos. Além dessa última parte, que carece de miaiores análises, todo o panorama fornecido por este pequeno texto deve ser revisado periodicamente, conforme os processos de reflexão e observação tornam-se mais eficazes. Encerra-se aqui o documento.