domingo, 14 de agosto de 2005

Sem sobressalto.

Só pra variar, estou botando algo novo de novo nessa espelunca. Por seu tamanho e profundidade, só postarei um conto ou crônica (ou o que quer que seja) do Mário de Andrade, que não trata do Dia dos Pais. Aliás, logo se perceberá que não poderia, do modo algum, tratar do Dia dos Pais. E o tom lírico-amoroso desse festivo dia dará lugar a uma sinceridade e hombridade incomuns..
O ibope aqui tá bom, continuem comentando!
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O Peru de Natal

por Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

— Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

— Meu filho, não fale assim...

— Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo!

"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
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Mário de Andrade (1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. Macunaíma, baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.
FONTE: http://www.releituras.com/marioandrade_natal.asp

sábado, 6 de agosto de 2005

Ai, ai, ai, ai... Tá chegando a hora...

Sabadão, meu último dia de férias, de Itapira full-time... Mas começa uma nova etapa rumo a algo que não sei direito o que será, mas que sei que será!
E voltando às origens, vou postar um artigo interessantíssimo sobre as inspirações noturnas e uma citação que deve ter algo a ver com o artigo... E não terá nenhum texto meu por um bom tempo, o que não é nada extremamente lastimável...
Chega de reticências! Vamos às exclamações!
Comentem!
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INTUIÇÕES NOTURNAS

Muitos cientistas, artistas e escritores consideram os períodos de sono como as horas de criatividade mais intensa. Nessas ocasiões, os nexos lógicos habituais são suspensos e “sonhamos de olhos abertos”.

Por Edoardo Altomare (tradução de Alexandre Massella)

Na última noite de 1997, Roderick MacKinnon, jovem pesquisador da Universidade Rockefeller de Nova York, trabalhava na definição do sistema molecular cujo funcionamento está na base da abertura e do fechamento de alguns canais celulares – os chamados canais iônicos, que servem para a passagem de íons de sódio através das membranas das células. A existência desses canais já era conhecida, mas ninguém conseguira, até então, distinguir sua estrutura e seu funcionamento, em virtude da dificuldade de “ver” a passagem dos íons por meio de imagens de alta resolução. O pesquisador compreendeu que o objetivo só poderia ser alcançado pelo uso da cristalografia de raios X: naquela noite refletia sobre essa questão, quando lhe ocorreu uma idéia inesperada. “Meus momentos mais produtivos são aqueles em que não consigo dormir”, revelou MacKinnon ao receber, graças àquela descoberta, o Prêmio Nobel de Química de 2003, junto com Peter Agre.

MacKinnon descreve assim a noite da descoberta: “De repente, uma imagem manifestou-se com clareza diante de meus olhos e vi, com todos os detalhes, a passagem dos íons através dos canais celulares”. Enquanto outros brindavam a chegada do novo ano, o cientista caminhava excitado em seu laboratório. Na manhã seguinte, após um sono breve e agitado, MacKinnon acordou com medo de que tudo não passasse de um sonho: “Corri para o laboratório, liguei o computador e averigüei a intuição: os íons estavam lá, atravessando os canais”. Foi assim que o jovem MacKinnon – hoje com quase 50 anos – assombrou a comunidade científica ao apresentar, em abril de 1998, a estrutura e o funcionamento do canal iônico.

A noite é o momento mágico da criatividade também para Alexei Abrikosov, Prêmio Nobel de Física de 2003: “Durante o dia penso nas fórmulas e faço os cálculos – declarou em Estocolmo, ecoando o colega MacKinnon –, mas os melhores momentos de minha atividade científica são à noite”. Há também vários insones produtivos entre poetas, artistas e escritores. Para ficarmos no âmbito científico: atribui-se a Einstein a afirmação de que os cientistas criativos são os únicos que tem acesso aos próprios sonhos. O caso do químico alemão August Kekulé é exemplar a esse respeito: ele “viu”em sonho, na imagem de uma serpente que mordia a própria cauda, a estrutura química em anel do benzeno. Podemos citar também o caso do matemático inglês Alan Turing, que parece ter intuído a máquina universal enquanto estava deitado em um gramado, num estado entre a vigília e o sono: uma espécie de sonolência desperta, lúcida e criativa, durante a qual afloram às vezes, em particular nas mentes bem preparadas, as soluções para problemas difíceis.

O significado do comentário de Einstein era talvez mais geral. Para alguns, o grande físico estaria se referindo ao fato de que a mente pode funcionar tanto por intuição como pelos ditames do bom senso e que, para descobrir algo novo, o cientista – como qualquer outra pessoa – deve escapar ao domínio imposto à “imaginação” por nossas faculdades lógicas, subvertendo o saber convencional do qual dependem as habilidades cotidianas. “Segundo a teoria freudiana”, observa Orlando Todarello, professor de psicoterapia da Universidade de Bari, “o sonho é uma atividade pouco organizada de pensamento que foge (embora não totalmente) ao controle da racionalidade e da censura”.

:: Caprichos da imaginação
“Na minha experiência”, comenta o químico americano Royston Roberts, autor de um livro sobre descobertas acidentais, “a imaginação e a memória estão mais ativas durante o sonho ou a sonolência. Raramente tive uma idéia quando estava sentado em minha sala na Universidade do Texas”. Roberts acrescenta que é mais provável que as melhores idéias sejam elaboradas nas primeiras horas da manhã, em um avião, durante um passeio ou num concerto. Charles Townes, Prêmio Nobel de Física de 1964, estava admirando flores no parque de Washington quando, de súbito, compreendeu o procedimento relativo ao laser. E Kary Mullin, Prêmio Nobel de Química de 1993, dirigia despreocupado seu carro quando teve a intuição que o levou à descoberta da Pcr, a reação em cadeia da polimerase que permite a ampliação e a identificação de fragmentos mínimos de DNA.

Para Todarello, “trata-se de uma condição similar à do sonho de ‘olhos abertos’, que lembra a chamada ‘regressão a serviço do Eu’, proposta por Ernst Kris”. Historiador da arte e psicanalista vienense, Kris (1900-1957) estudou as relações entre a criação artística e os fenômenos psicológicos profundos. Todarello explica que “quando se regride a estados menos organizados da atividade psíquica, são suspensos os nexos lógicos habituais e o material psíquico se mistura de forma confusa, permitindo intuições e novas associações”.

A intuição – definida pelos filósofos como uma forma privilegiada de conhecimento, que permite a posse imediata e total do objeto – desempenha um papel decisivo na criatividade, em particular na científica. É uma espécie de túnel sob os procedimentos lógicos habituais, que só alguns conseguem escavar e assim alcançar a verdade. “Enquanto a razão”, prossegue Todarello, “segue circuitos corticais complexos e lentos, a intuição, assim como a emoção, é uma modalidade rápida de conhecimento da realidade”.

Mas há uma questão crucial: para resolver um problema, para ativar nossa capacidade de compreender repentinamente a “linguagem das coisas”, é melhor estar desperto e insone ou dormir? Muito ainda precisa ser esclarecido a esse respeito, como sugere uma pesquisa alemã publicada em 2004 na revista Nature. Partindo de relatos sobre intuições fundamentais ocorridas durante o sono, uma equipe de neuroendocrinologistas, psicólogos e neurologistas da Universidade de Lubecca aplicou um teste matemático: uma tarefa que envolvia o aprendizado de seqüências estímulo-resposta e na qual as pessoas pesquisadas podiam melhorar gradualmente o seu desempenho aumentando a velocidade de resposta. Apresentou-se assim a um grupo de voluntários (66 no total) uma série de oito números junto com uma regra simples por meio da qual devia ser gerada uma segunda série de sete números. As pessoas foram solicitadas a deduzir, no tempo mais breve possível, o valor final da seqüência.

Havia uma “fórmula-atalho” oculta que, caso intuída, permitiria calcular o valor rapidamente. Após o treinamento inicial, as pessoas foram dividas em três grupos: o primeiro estudou o problema à tarde e pôde dormir 8 horas; o segundo enfrentou a tarefa sem repouso noturno; o terceiro, finalmente, foi submetido ao teste pela manhã e desfrutou as 8 horas da vigília diurna normal. As pessoas que haviam se beneficiado do repouso revelaram ser duas vezes mais capazes de intuir a “fórmula-atalho” oculta, não só em relação às que permaneceram acordadas durante a noite como em relação às que ficaram despertas durante o dia. O sono parece assim inspirar e facilitar a intuição. Segundo os autores do estudo, o sono “consolida as recordações recentes e estimula a intuição mediante a reestruturação delas”.

:: Sono Conselheiro
Enquanto dormimos, nosso cérebro reorganiza as recordações “episódicas”, isto é, as informações relativas a lugares específicos, pessoas, conversas e experiências: essa reorganização dos eventos cotidianos pode explicar o melhor desempenho das pessoas que repousaram. É assim que Jan Born, neuroendocrinologista e coordenador da pesquisa, interpreta os resultados obtidos: “Acreditamos que as recordações recentes são armazenadas em uma área cerebral particular, o hipocampo, enquanto a memória ‘permanente’ parece ser acomodada em uma área diferente, o neocórtex. No sono, as recordações podem ser desviadas de uma região cerebral para a outra e são reordenadas durante esse processo”.

Sidarta Ribeiro, neurobiólogo da Duke University de Durham, na Carolina do Norte, considera que “na fase REM, caracterizada por movimentos oculares rápidos, as informações talvez sejam reorganizadas”. No fundo, segundo Ribeiro, isso é apenas a demonstração de uma lei já observada pelas pessoas de bom senso: “durma” é mesmo o melhor conselho para quem enfrenta dificuldades na solução de um problema complexo. O sono, segundo um estudo de Born e colegas, reforça o “pensamento lateral”. O conceito não corresponde exatamente ao de “criatividade”; esta se refere simplesmente à produção de algo novo, enquanto o pensamento lateral diz respeito à alteração de conceitos e percepções.

Compreender o que o cérebro realiza enquanto dormimos ainda é um objetivo a ser perseguido. Os especialistas em transtornos do sono, no entanto, enfatizam todos a importância de um bom repouso noturno. Mas John Shneerson, neurologista inglês do Papworth Hospital, em Cambridge, adverte alarmando: “Não dormimos o suficiente”. E não se trata apenas de uma tendência, ele acrescenta, mas de uma verdadeira epidemia, favorecida pelo ritmo alucinante de nossa vida, sobretudo no trabalho. Os especialistas em sono aconselham assim um curioso remédio: um cochilo regenerador (um power nap de meia hora) no escritório para reativar a criatividade enfraquecida. Uma solução que várias pessoas já intuíram e puseram em prática há muito tempo.

PARA CONHECER MAIS:

Sleep inspires insight. Ulrich Wagner, Steffen Gais, Hilde Haider, Rolf Verleger e Jan Born, em Nature, nº 427, págs. 352-355, 22 de Janeiro de 2004.

Enciclopédia Oxford della mente. Richard L. Gregory, Benedetto Saraceno e Elena Stemai (orgs.). Sansoni Editore, 1991.

Serendipity. Accidental discoveries in science. Roystom M. Roberts. John Wiley & Sons, 1989.
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Edoardo Altomare é médico oncologista e jornalista. É autor de Influenza e Medicine & Miracoli. Dal Siero Bonifácio al Caso Di Bella, entre outros livros científicos.

FONTE: Revista Viver Mente & Cérebro, ano XII nº150, de julho de 2005, págs. 84 a 87. Site: http://www.vivermentecerebro.com.br/ . ISSN 1807-1562. Duetto Editorial, São Paulo, SP, Brasil.

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Já diziam os antigos...
"O homem toma por inteligência o uso das suas faculdades de imaginação."
Louis Scutenaire